sábado, 30 de janeiro de 2010

Ópera-rock sobre o cárcere de Abaetetuba

Erik Johansson - fishy Island

Ópera-rock sobre o Cárcere de Abaetetuba

1 – os fatos

Tinha quinze anos e subtraíra um Rolex made
in China ou um CD by Zona Franca de Manaus.

Por isso fora jogada
numa cela úmida de suor e porra.

Uma cela ocupada por homens exemplares,
educados na arte da pederastia e da extorsão
– onde trocava um copo d’água por uma chupada.

Tinha quinze anos e roubara pouco mais
de uns reais que não lhe pagavam a fome.

Por isso fora jogada
numa cela feita de aço, músculo, testosterona.

Uma cela abarrotada de orações sinceras
de sífilis de gonorréia
– onde trocava fiapos de colchão por tapas na cara.

Tinha quinze anos e roubara um pedaço de pão
ou uma carteira de couro de avestruz.

Por isso fora jogada
numa cela fedendo a desinfetante de menta e cu.

Uma cela decorada com frases de ódio
e estelares bocetas globais
– onde trocava um prato de comida por uma trepada.

2 – o carcereiro

Nada perturba o seu sono.

O canto da navalha, no pescoço de quem dorme,
não lhe tira o apetite
– treta de cigarro, mulher ou cocaína:
é com sangue que se assina esses contratos.

(O trânsito é um problema que o incomoda:
busina, semáforo, lhe tiram do sério.)

Nada perturba o seu sono.

O choro noturno de quem será enforcado
não lhe rouba a disposição
– o cinto e o cadarço cumprem o papel
que Deus lhe designou.

(O chuvisco na TV é um empecilho:
não há riso sem o programa, sem o comercial.)

Nada perturba o seu sono.

A emboscada que culmina em desgraça
não lhe inibe o descanso
– ordem natural das coisas:
quatro homens no banheiro, outro que não é mais.

(Futebol é algo que o desconcerta:
o empate é inadmissível; a derrota, insuportável.)

Nada perturba o seu sono.

3 – os detentos

Um cultivou o seu amor com agrotóxico,
enterrou o corpo na horta,
onde nunca mais nasceu nada.

Outro, em nome da honra da filha,
cortou o pinto do vizinho e jogou na rua
– ali, brincavam de varinha atrás.

Mais ao fundo, um unha-de-fome
que têm o estômago como mentor
intelectual de seus atos

– roubava supermercados
com a prudência de ser preso: nada lhe
era melhor que a comida sem sal do Estado.

Alguns, resignados, assumiram crimes alheios
afim de quitarem carnês de jogatina e tráfico:
confessaram degolas, adotaram algumas fraturas

– em sua maioria ritualísticos ladrões de galinha
e usuários recreativos de cola de sapateiro,
que não teriam mesmo outro lugar para ir.

Há aqueles que não possuem crime algum
senão terem nascidos inclinados ao soco,
atraídos pelo grito, propensos ao ódio.

Aqui o sol é o mesmo para todos
e o interruptor o apaga.

4 – opinião pública

A língua áspera lambe a notícia
até que a menina morra envenenada

Amanhã, uma mais perversa enfeitará a página
e depois de amanhã uma nova desgraça
(nenhuma azedará o almoço).

Com um imã, afixar o jornal na geladeira
não lhe parecerá estranho.

5 – o culpado

O dedo pode correr sobre a lista telefônica,
comer cada um dos nomes: nenhum será o dele.

O olho atento poderá sorver a página policial,
percorrer sem tropeço os livros dos cartórios.

Os passos podem excursionar pelas genealogias,
singrar das raízes profundas às folhagens.

A mão pode investir sobre todas as identidades,
freqüentar os volumes de centenas de bibliotecas.

A voz pode indagar pelas ruas, gritar nos museus,
visitar cada um dos nomes: nenhum será o dele.

6 - fim

cada casa é uma trincheira
que se defende de um inimigo invisível

(talvez seja o vizinho
ou nos mesmos - algo nos diz)

e rua a rua a guerra é perdida
pelo avanço de exército nehum




* do livro Comerciais de Metralhadora

3 comentários:

Matheus José Mineiro disse...

01;31 acabo de ler esse poema.Fantastico,otima criação.Ritmo legal,figuras fortes como nosso cotidiano.
massa.massa.

Rodrigo Moreira Pinto disse...

"Aqui o sol é o mesmo para todos

e o interruptor o apaga"


Muito, muito bom.

Anônimo disse...

demais de bom...
encerra muita coisa que acredito!
beijo, Nolli!